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Raymundo Paraná: “O SUS é a maior política pública de reparação que esse país já conheceu”

Professor Raymundo Paraná

“O Sistema Único de Saúde (SUS) é a maior política pública de reparação que esse país já conheceu”, afirma o médico e professor Raymundo Paraná, que coordena o projeto de implantação do novo centro de formação em biologia molecular para investigação de hepatites virais e outras doenças do fígado, inaugurado no último mês de agosto, no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), em Salvador/BA.

Na entrevista a seguir, Raymundo Paraná faz uma avaliação sobre a atenção aos pacientes, apontando avanços e retrocessos no tratamento das hepatites no país. Também fala sobre a implantação de um laboratório semelhante no Acre, onde ele desenvolve serviços para a expansão institucional da medicina, dedicando-se aos cuidados de saúde nas comunidades indígenas e ribeirinhas. Os dois novos centros foram financiados pela francesa Fundação Merieux, que investiu o valor de € 2.500.000,00 (Dois milhões e quinhentos mil euros) para construir e equipar os laboratórios.

Além de possibilitar a realização de exames mais modernos, que ajudarão no tratamento para os pacientes (como exames para medição de carga viral, genotipagem dos vírus B, C e D, sequenciamento para resistência aos medicamentos usados na Hepatite C e B), os novos centros também contribuirão com a formação de bioquímicos, biomédicos, médicos e farmacêuticos do norte do país para atuar na região Amazônica, que é hiper endêmica para Hepatites Virais.

Graduado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia, com mestrado e doutorado em Medicina e Saúde pela UFBA, Raymundo Paraná fez especialização em hepatologia no Hospital Hotel Dieu, no Instituto de Pesquisa Médica da França. Ingressou na carreira acadêmica, em 1992, quando passou no concurso para professor de Clínica Médica do Departamento de Medicina da UFBA.

É presidente eleito da Associação Latino-Americana para o Estudo do Fígado para o Biênio 2018 e 2020, médico assessor da câmara técnica em Hepatites Virais – projeto da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e do Ministério da Saúde do Brasil, membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia, Associação Americana para o Estudo do Fígado (AASLD), Associação Européia para o Estudo do Fígado (EASL) e Associação Latino-Americana para o Estudo do Fígado (ALEH).

 

– Qual a expectativa com a inauguração do novo centro de formação de biologia molecular aplicada a doenças de fígado Charles Merieux?

O centro permitirá realizar exames mais modernos para analisar a genotipagem, carga viral e sequenciamento do vírus das hepatites, além de conhecer a resistência dos vírus aos medicamentos, contribuindo para o melhor tratamento dos pacientes. São exames mais sofisticados, que não estão disponíveis atualmente no Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive para detecção dos vírus das hepatites D e E. Essa inovação é o papel de um centro de referência.

Será uma ferramenta que municiará os médicos para a efetividade dos protocolos terapêuticos, com informações clínicas que não existiam antes. Além disso haverá um aumento da capacidade do laboratório. Deverão ser realizados 150 exames por mês do centro, atendendo a uma demanda do estado da Bahia através do Laboratório Central (Lacen-BA) e de outros estados do Norte e Nordeste. A expectativa é de autofinanciar o laboratório através do SUS. O centro vai também dar maior agilidade a atuação da enfermaria do HUPES.

 

– Essa conquista resulta de muitos anos de serviços prestados na área da hepatologia. Qual a sua contribuição como coordenador do novo centro?  

Em 1999, iniciamos um projeto em parceria com o Estado do Acre, em áreas hiper endêmicas para hepatites, semelhante ao que acontece apenas em algumas regiões da África e Ásia. Começamos a trabalhar lá com o desenvolvimento de pesquisas locais e formação de profissionais no HUPES, que é um centro de referência em hepatite viral bastante consolidado e um dos mais produtivos do país. No ano de 2012, apresentei à Fundação Merieux o projeto para construção do laboratório na cidade de Rio Branco e ampliação do laboratório aqui em Salvador. Foi aprovado o investimento no valor de € 2.500.000,00 (Dois milhões e quinhentos mil euros) para a construção dos laboratórios e aquisição de equipamentos e treinamento de pessoal com o professor Andreas Stöcker, que será responsável por coordenar o laboratório no HUPES. Projetos como esses formam o quadriênio: ensino, pesquisa, extensão e assistência. Os testes de biologia molecular fomentarão pesquisas que ajudarão na assistência aos pacientes, permitindo, por exemplo, identificar casos da Hepatite E, tipo mais raro e pouco estudado no Brasil – cuja contaminação se dá através da água ou alimentos contaminados, especialmente frutos do mar e carnes de porco e caça mal passadas.

 

– O projeto também é dedicado a formação de profissionais na área?

A hepatologia é uma área que tem poucos profissionais formados no Brasil. São menos de 500 profissionais, a maioria concentrada no eixo Sul—Sudeste. O acesso à hepatologia no SUS é dramático. Residências médicas em áreas clínicas estão fechando. Como especialistas clínicos vivem do saber médico, da consulta, não realizam procedimentos que o remunerem por isso. Então acaba sendo mais atrativo para os jovens médicos optarem por outras áreas com melhor remuneração. Quem acaba atendendo a esses pacientes são os gastroenterologistas e infectologistas. O Brasil não está formando hepatologistas na medida da sua necessidade. É um grande desafio atender a esses pacientes.

Esse projeto contempla uma função social com a formação de profissionais para atuar na área e atender populações esquecidas na Amazônia, como ribeirinhos e indígenas, que não têm voz nas políticas públicas de saúde. Além da contribuição do projeto na formação de médicos, haverá também treinamento de biólogos e bioquímicos para atender na parte laboratorial.

 

– Como avalia o tratamento das hepatites no país?

O tratamento da hepatite C mudou radicalmente de 2014 para cá. Na história da medicina nunca houve algo que fosse tão rápido como os avanços com o tratamento da doença. Antes os medicamentos eram agressivos, com efeitos colaterais. Hoje temos medicamentos orais, sem efeitos adversos, com 90% a 95% de índices de cura, com um tratamento que dura três meses e é acessível aos pacientes através do SUS. Infelizmente, não está disponível para todos os portadores (de hepatites virais), mas para aqueles com a doença em estágio mais avançado, hierarquizando aqueles que precisam mais.

Foi desenvolvida uma tecnologia conhecida como Replicon, que permite a compreensão de todas as etapas da replicação viral e de drogas antivirais que podem atuar em cada uma dessas etapas. Isso impede que o vírus desenvolva resistência aos medicamentos. Também estão sendo desenvolvidas novas drogas para a hepatite B que, ente 3 a 4 anos, tomarão proporção semelhante para o tratamento da doença. A hepatite A, que tem transmissão predominantemente oro-fecal, é um caso mais simples, porque não cronifica. É evitável através da vacinação, mas o Brasil não está vacinando. Estamos lutando para isso. Também existe vacinação para a hepatite B, que é transmitida por relações sexuais. Já a hepatite C é transmitida através do contato com sangue contaminado.

 

Novo laboratório realizará 150 exames por mês.

Novo laboratório realizará 150 exames por mês.

– O que precisa ser melhorado?

Até o ano 2000 não existia programas de controle das hepatites virais e pagamos o preço por ter começado tarde. A partir de 2003 houve uma melhora substancial do atendimento a portadores de hepatites virais e doenças do fígado no SUS. Porém, nos últimos três anos, tem sido mais difícil assegurar recursos para o financiamento de pesquisas e incorporação de novos medicamentos e procedimentos. É um tratamento que satisfaz, porém os medicamentos que usamos não são de primeira linha, como os que são usados em países da Europa, Canadá e Estados Unidos.

Mas não acho que esse seja o problema. O sistema precisa ser viabilizado. Vejo o SUS como se fosse um filho, pelo menos filho de uma geração da qual sou parte, que lutou contra a ditadura militar e conseguiu colocar o acesso à saúde como um direito constitucional. O que a gente faz com um filho? Oferece o que pode dar de melhor, mas também precisa dar limites. O sistema é assim, temos que usar com racionalidade, equacionando a capacidade da fonte pagadora.

O SUS é a maior política pública de reparação que esse país já conheceu, exterminou com doenças infecciosas que matavam muitas pessoas e mudou completamente o perfil de saúde da população brasileira. Sou do tempo em que o paciente que não era previdenciário era chamado de indigente e dependia da caridade. O SUS é um projeto ambicioso, mas não é uma tarefa fácil, particularmente diante de gestões desastrosas e mau uso dos recursos.

O tratamento (para hepatite C) tem uma relação custo-efetividade significativa, evitando, por exemplo, os transplantes em decorrência da doença. Com o tratamento também diminuem muito as internações atendimentos ambulatoriais.  Mas faltam recursos para custear esses medicamentos. Ainda que o Brasil tenha negociado o preço dos remédios e conseguido um desconto médio de 30%, o valor é alto para tratar cerca de 1.5 milhão de pacientes.

 

– Como avalia a situação da saúde pública no país neste momento?

De uma forma geral, o Brasil enfrenta um cenário de crise com a redução dos investimentos em ciência e tecnologia. Na saúde, faltam até mesmo lençóis e papel higiênico em determinados hospitais. Os Hospitais Universitários têm muito mais dificuldades. Muitas vezes verbas de pesquisa precisam ser redirecionadas para manutenção de equipamentos. Estes hospitais atendem casos de alta complexidade, mais caros, e não podem ter os mesmos parâmetros de outros hospitais comuns. Além disso, são responsáveis pela formação de profissionais. Se os hospitais universitários forem avaliados pelos mesmos indicadores de eficiência e padrões de produtividade de outros hospitais não universitários, cairá a qualidade do ensino e a resolutividade dos casos. Os Hospitais Universitários têm que ser tratados como a joia da coroa.

 

– Nos anos 90, o HUPES desenvolveu um trabalho pioneiro em relação ao vírus da hepatite C no país. Como foi o trabalho naquele período?

O HUPES foi o primeiro hospital do Brasil a fazer testes de hepatite C e responsável pelas primeiras publicações epidemiológicas sobre o tema. A hepatite C foi descoberta no ano que retornei de minha formação Instituto Nacional de Pesquisa Médica na França, que fez doações para que realizássemos esses testes em fase pré-comercial. Descrevemos aqui no Brasil alguns grupos de risco como jogadores de futebol das décadas de 1960/70 e 80, devido a aplicação de vitaminas injetáveis com seringas de vidro. Muitos deles foram diagnosticados naquele período e seguem em tratamento até hoje no HUPES. Alguns passaram por transplante e outros já foram curados.

 

– Porque o seu interesse pela área?

Entre as doenças do fígado, as hepatites são responsáveis por 50% das indicações de transplantes no Brasil e 70% das causas de câncer de fígado. É um tema muito interessante. E quando fiz a minha formação na França, o meu chefe, o pesquisador francês Christian Trepo, era um dos maiores pesquisadores do mundo na área, o que me reforçou ainda mais o meu interesse.

 

– Poderia falar sobre o trabalho que você desenvolve na região Norte do país?

Estamos inaugurando no Acre o laboratório mais moderno do país, que incorpora a tecnologia e conhecimento da Fundação Merieux, construído com material pré-moldado que reduz muito as possibilidades de contaminação. O centro atenderá uma região da Amazônia que registra três vezes mais casos de hepatite C do que a Bahia. Suspeitamos que

"O centro permitirá realizar exames mais modernos para analisar a genotipagem, carga viral e sequenciamento do vírus das hepatites", ressalta o professor

“O centro permitirá realizar exames mais modernos para analisar a genotipagem, carga viral e sequenciamento do vírus das hepatites”, ressalta o professor

a realização de testes de malária (em condições não adequadas) possam ter ajudado a disseminar o vírus. Essa é uma das possibilidades, entre muitas outras que são consideradas. Também verificamos que os vírus das hepatites B e C nesta região são completamente diferentes do que existe resto do mundo. Muitas informações são importadas de outros países sobre vírus que não circulam no Brasil. Através do Grupo de Estudos em Hepatites Virais, envolvendo os centros de referência em Hepatologia de Salvador-BA, Rio Branco-AC, Cruzeiro do Sul-AC, Porto Velho-RO, produzimos conhecimento buscando preencher essa lacuna sobre informações acerca das peculiaridades genéticas dos vírus da hepatite na Amazônia.

 

– Como essa iniciativa atinge as populações indígenas e ribeirinhas?

São cerca de 2.000 pacientes em tratamento no Acre e em Rondônia pertencentes a essas populações. Após o diagnóstico e acesso ao tratamento, os pacientes retornam para as suas comunidades e todo trabalho é feito no sentido de orientar a tomarem a medicação corretamente. Realizamos também conferências através de uma rede de telemedicina (que envolve profissionais de ambos os centros) para análise dos casos. Existe um programa chamado saúde itinerante em que os médicos vão até os pacientes de barco para realizar exames. É um trabalho difícil, mas gratificante.

 

– Qual o interesse atual de suas pesquisas?

Atualmente investigamos outros tipos de doenças hepáticas com o funcionamento de um ambulatório multidisciplinar voltado para pacientes com doença hepática induzida por drogas, fitoterápicos, insumos vegetais, medicações para fitness ou suplementos alimentares.  As pois as pessoas estão recorrendo a práticas que não são reconhecidas cientificamente, aumentando muito os casos de toxicidade hepática. Com o intuito de modelar o corpo, recorre-se a chás, suplementos alimentares e substâncias como erva cavalinha, espinheira-santa, cáscara sagrada, chá verde e outras.

 

– Quais as recomendações para a população em geral para os cuidados com o fígado?

Não se automedicar e nem se medicar com o balconista da farmácia. Entender que não existe medicina alternativa. Medicina é uma ciência. O que derruba um conceito científico e é outro conceito científico. Cuidado com os modismos descompromissados com a saúde da população e sites comerciais que criam mitos para explorar comercialmente substâncias como Hibisco, Babosa e Cogumelo do Sol. O que está mais me preocupando nos dias de hoje são as práticas de modelação do corpo, especialmente com os anabolizantes, que podem gerar problemas décadas depois do seu uso.

Fonte: EdgarDigital