Esconda grãos de feijão – ou de arroz, milho, ervilha, ou todos eles misturados – dentro de uma caixa de fósforos e imagine que alguém seja capaz de adivinhar o que você escondeu sem precisar abri-la, simplesmente decifrando os zigue-zagues de um gráfico produzido a partir do som que a caixinha emite, gravado quando ela é agitada.
Agora imagine que, como se já não bastasse adivinhar os tipos de grão que você escondeu, esse mago imaginário das caixinhas de fósforo fosse também capaz de descobrir o tamanho, o peso, a cor e o brilho de cada um dos caroços que você pôs dentro da caixa, e talvez até mesmo quanto tempo é preciso para que cada um deles cozinhe (ou, no caso do milho, virem pipoca).
Foi algo mais ou menos assim que Victor Mancir, recém-doutor em física – pela UFBA e simultaneamente pela Universidade de Rennes I, na França, graças a um acordo de cotutela –, descobriu em sua tese intitulada “Contribuição ao Estudo da Função Dielétrica de Superfície por Espectroscopia de Perda de Energia dos Fotoelétrons Induzidos por Raios X (XPS-PEELS)”. Pela originalidade, o trabalho tem grandes chances de resultar em uma patente e pode vir a ter grande aplicabilidade tanto na pesquisa básica quanto na indústria, na avaliação do professor do Instituto de Física (IF) da UFBA Denis David (coordenador do Laboratório de Materiais – LabMat, no IF, e do Laboratório de Certificação de Componentes para Energia Solar Fotovoltaica – LabSolar, no Parque Tecnológico, e integrante do Laboratório de Propriedades Óticas – LaPO), que orientou a tese.
Trata-se de algo mais ou menos como a “mágica” da caixinha de fósforos (analogia, por sinal, sugerida pelo próprio Victor), só que em uma dimensão microscópica. O trabalho de Victor Mancir mostrou que é possível descobrir propriedades físicas – como os coeficientes de reflexão e absorção de luz, ou as condutibilidades elétrica e térmica – dos elementos químicos presentes em praticamente qualquer material a partir da análise de seu “espectro”, um gráfico produzido a partir do bombardeio de minúsculas amostras de qualquer coisa com raios X.
Para chegar a isso, em vez de uma caixinha de fósforos, Victor utilizou um espectrômetro de raios X, uma complexíssima máquina normalmente utilizada para identificar quais elementos químicos estão presentes em amostras de algum material desejado. Em vez de grãos, ele “escondeu” dois materiais: o alumínio e o óxido de alumínio (materiais presentes, por exemplo, naquela folha de papel alumínio que qualquer pessoa tem em casa). E em vez de um gráfico do som, ele analisou o gráfico produzido a partir da exposição das amostras aos raios X – o chamado espectro fotoeletrônico –, por meio de uma técnica conhecida como “espectroscopia de fotoelétrons excitados por raios X”, ou simplesmente XPS. Inseridas no espectrômetro e bombardeadas por raios X, as amostras liberam elétrons com diferentes quantidades de energia, e a contagem das quantidades e velocidades desses elétrons dá origem ao gráfico que os físicos chamam de “espectro”.
O trabalho de Victor mostrou que é possível ampliar significativamente as potencialidades da XPS. Duas características principais fazem dele um trabalho inovador. A primeira é o fato de ele ter desenvolvido uma maneira de aproveitar uma região do espectro – os chamados “plasmons” – que os programas de análise do XPS geralmente desprezam, mas que contém informações preciosas sobre os materiais estudados. Até o momento, a técnica XPS vem dando maior atenção aos “picos”, partes mais agudas dos gráficos, que servem para indicar a presença de tal ou qual elemento químico, mas não para indicar suas propriedades físicas. Além disso, Victor conseguiu determinar as propriedades físicas dos metais, elementos químicos condutores de energia, algo que até então a XPS não era capaz de fazer – ampliando assim a aplicação dessa técnica a todos os tipos de materiais (isolantes, semicondutores e metais).
Dito assim, parece apenas mais uma daquelas tecnicalidades do mundo dos físicos. Mas o potencial de aplicabilidade da descoberta de Victor pode abrir vertentes de pesquisa e de desenvolvimento de uma diversidade inimaginável de produtos. A técnica estudada por Victor permite a análise da composição e das propriedades físicas de superfícies finíssimas, e foi batizada PEELS (photoelectron energy loss spectroscopy, ou espectroscopia de perda de energia de fotoelétrons). Num vislumbre do futuro, o professor Denis acredita que a técnica desenvolvida por seu pupilo poderá ajudar a ciência e a indústria a desenvolverem, por exemplo, películas invisíveis capazes de endurecer superfícies de aço ou reduzir o atrito, ou ainda novas tecnologias anti-reflexo e mesmo de mudança de cor de objetos – apenas para citar algumas possibilidades.
Da luz do sol aos raios X
Descobertas em torno do desenvolvimento da espectroscopia XPS já renderam o prêmio Nobel de física a pelo menos três cientistas europeus na primeira metade do século 20. É cedo, evidentemente, para imaginar que Victor possa vir a ganhar um prêmio dessa magnitude. “O trabalho do Mancir é inovador e tem seu mérito independentemente de eventuais premiações”, afirma o historiador da ciência e pró-reitor de Pesquisa, Criação e Inovação da UFBA, Olival Freire Jr. De fato, talvez bem mais importante do que qualquer prêmio seja o fato de um jovem baiano negro de 30 anos, filho de um comerciante de baterias automotivas e de uma dona de casa que originalmente moravam no bairro do Curuzu, antes de mudar para Brotas, estar dando uma contribuição para a ciência que pode vir a ter repercussão internacional.
Ao contar rapidamente sua história de vida, Victor não pesa em demasia os desafios que já enfrentou por vir de uma família sem privilégios. “Foram mais ou menos os mesmos desafios” de qualquer estudante talentoso que seguiu carreira acadêmica, avalia, otimista. Ele estudou em uma escola particular do bairro, quando criança, antes de entrar no antigo Cefet (atual Instituto Federal da Bahia – IFBA) na adolescência. “A entrada no Cefet foi um divisor de águas para mim. Ali tive bons professores, que me deram a base para que eu pudesse ser aprovado no vestibular da UFBA”, em 2005. Em 2012, Victor fez concurso para professor no IFBA. E passou, antes mesmo de concluir o mestrado, superando candidatos que até doutorado já tinham. “Fico feliz por hoje dar a minha contribuição na mesma escola que mudou minha trajetória”, diz ele.
Orientado desde a graduação em física pelo professor Denis – um francês que se radicou em Salvador em 2004 para pesquisar sobretudo tecnologias de energia solar, à luz do sol baiano –, Victor desenvolveu, ainda no curso de graduação em física, como bolsista de iniciação científica, um sistema de medição da qualidade da luz solar na cidade de Salvador. O objetivo era mapear os locais com maior potencial de geração de energia solar na cidade. Ele flertou com as engenharias mecânica e elétrica e também com a ciência da computação para conseguir fabricar seu próprio espectrorradiômetro – um equipamento que mede o espectro da luz solar, e que custa entre R$ 10 mil e R$ 500 mil no mercado.
No mestrado, Victor incrementou o espectrorradiômetro, acoplando-o a um seguidor solar, uma peça que permite acompanhar a trajetória do sol e fazer medições ao longo de todo o dia. E começou a trabalhar com espectroscopia da luz, identificando materiais suspensos no ar, como partículas e gases, que interferem no caminho da luminosidade solar, gerando perdas que alteram sua capacidade de geração de energia.
O pulo para a espectroscopia de raios X viria no doutorado. A lógica da técnica PEELS é, de certo modo, análoga à da espectroscopia da luz solar: tudo gira em torno de calcular as perdas de energia que os elétrons sofrem na interação com outros materiais que se interpõem em seu caminho. Victor e o professor Denis perceberam que as perdas de energia correspondentes a essas interações ficavam registradas em uma parte do espectro eletrônico, obtido via XPS, que a física até então praticamente desprezava, os chamados plasmons. E que cada uma dessas perdas correspondia à interação com um tipo de elemento químico específico. A partir daí, Victor trabalhou na criação de um algoritmo que permite decifrar os plasmons, depreendendo deles a chamada “função dielétrica” do material analisado – e, a partir dela, chegar às suas propriedades físicas.
Experiência internacional
O professor Denis não seria o único francês a participar da formação de Victor. Ainda na UFBA, ele conheceu o engenheiro Pascal Bargiela, responsável pelo Laboratório de Análise de Superfícies (LAS) do Instituto de Física, que o iniciou na espectroscopia XPS. Contratado graças a uma parceria da UFBA com a Petrobrás, Bargiela é quem zela pelo bom funcionamento do espectrômetro Specs Phoibos 100 na Universidade.
A cotutela com a Universidade de Rennes I foi possível graças à parceria com outro francês, o professor Christian Godet, diretor de pesquisa do CNRS no Instituto de Física de Rennes, que acolheu e orientou Victor ao longo do ano em que ele esteve na França. Graças à cotutela, Victor obteve dois títulos em um: tornou-se doutor pela UFBA e, ao mesmo tempo, por Rennes I. O acordo de cotutela é algo relativamente raro – em 2015, por exemplo, ano do último dado disponível, apenas 12 estudantes foram beneficiados – e a condição fundamental é que o estudante passe 25% do período de estudos na universidade estrangeira, sob orientação de um pesquisador local. “Esta circulação demanda o enfrentamento das barreiras linguísticas e culturais, mas ela é fundamental para a produção de conhecimento científico de qualidade, em particular em áreas como a física”, avalia o pró-reitor Olival Freire Jr. A estadia de Victor na França foi custeada através de uma bolsa de doutorado sanduíche do CNPq (edital Ciência Sem Fronteiras – linha 2), no âmbito de um projeto de pesquisa sobre a PEELS proposto pelos professores Denis David e Antônio Ferreira da Silva – coordenador do Laboratório de Propriedades Óticas do IF, e que teve papel fundamental na obtenção da bolsa – e de uma segunda bolsa, concedida pela Région Bretagne, da França.
Victor fala com entusiasmo do período que passou na França. Conheceu não apenas franceses, mas também indianos, senegaleses, russos, norte-americanos, gente, enfim, de todos os cantos. Encantou-se com a seriedade científica de todos e, mais do que isso, com a possibilidade de relativizar seus próprios paradigmas culturais, de “conhecer modos de pensar diferentes” – algo que acredita ser fundamental para a formação científica e humana de qualquer pessoa. Victor disse que sentiu menos o racismo lá do que em Salvador. Pois então, se você cruzar por aí com um rapaz franzino, de lábios grossos, cujos óculos espessos e aparelho nos dentes já prenunciam a voz rarefeita e meio hesitante típica desse pessoal meio genial, apenas cogite: ele pode ser doutor na “Oropa, França e Bahia”.