“Apesar dos cabelos brancos, quem está aqui é uma pessoa nova, fazendo uma coisa diferente do que sempre fez”, assim o filósofo Roberto Machado, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), iniciou sua conferência “Michel Foucault, pensador e militante”, na noite de quarta-feira, 28, no Salão Nobre da Reitoria da UFBA. Adiante ele explicaria que Impressões de Michel Foucault, o livro que estava lançando naquela noite, base de sua fala, constitui uma tentativa de inaugurar um novo formato em sua produção escrita.
Roberto Machado talvez seja mais conhecido no país pela organização de Microfísica do poder, livro que vem apresentando o pensamento de Foucault a sucessivas gerações de estudantes brasileiros. Mas, após ter publicado trabalhos sobre Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Marcel Proust, ele pretendeu “se reinventar pela escrita”, contando a história de sua longa relação com Michel Foucault, vivida nos cursos do Collège de France e nas vindas do filósofo francês ao Brasil.
O trabalho seria, segundo ele, uma união entre “desejo de reflexão e desejo de ficção”, trabalhado numa prosa leve e fluida, sem perder, no entanto, o rigor conceitual. “Tive que reler toda a obra de Foucault para não cair em erros”, disse.
Roberto Machado contou aos estudantes que lotaram o salão nobre que seu primeiro encontro com Foucault ocorreu quando ele procurava novos textos para seu curso de epistemologia das ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) e se deparou com As palavras e as coisas. “Li e não entendi quase nada. Do pouco que entendi, discordei de quase tudo”, recordou, provocando risos na plateia.
De fato, as ideias ali apresentadas iam de encontro à formação fenomenológica que tivera, mas ele se viu seduzido pela obra, disse, e especialmente marcado pela frase de inspiração nietzschiana que a encerra: “o homem é uma invenção recente cujo fim talvez esteja próximo”. Decidiu estudar o livro com os alunos em sua disciplina e, no ano seguinte, 1973, teve a oportunidade de conhecer pessoalmente Foucault no curso “A verdade e as formas jurídicas” que ele fora convidado a dar pelo Departamento de Letras da PUC-Rio.
Co-traduzido por Machado, e posteriormente publicado, foi nesse curso que Foucault “apresentou uma genealogia da relação entre saber e poder, privilegiando as práticas judiciárias e tratando do poder disciplinar”. Era, segundo Machado, uma nova fase na produção intelectual do filósofo francês, quando ele passa a examinar o aparecimento dos saberes sobre o homem, os chamados dispositivos políticos e os mecanismos de poder. “É da não identificação do poder com o estado que ele trata, ou da percepção de que existem vários poderes paralelos, inclusive anteriores ao estado, de uma forma diferente do que pregava o marxismo hegemônico na academia de então”, disse. Microfísica do poder, um fenômeno de vendas desde que foi lançado em 1979 e hoje com quase 30 edições publicadas, desenvolveu essa nova ideia trazida por Foucault.
O segundo passo na relação de Roberto Machado com Foucault foi frequentar, ano após ano, os cursos do pensador francês no Collège de France. O filósofo “falava com aquela solenidade de orador fúnebre do século XVII, mas junto com esse lado orador tinha um outro lado rato de biblioteca”. Coexistiam nele “o grande orador e o pesquisador de fontes primárias com uma capacidade extraordinária de achar documentos esquecidos pelo tempo e criar novas hipóteses”. Segundo Machado, “para quem quer pesquisar utilizando o método de Foucault, seus cursos são mais importantes que seus livros, porque trazem muito material factual e são espaços abertos para diálogos, suposições, construções de hipóteses e teorias a partir da pesquisa”. Isso, em sua visão, é diferente dos livros de Foucault, “que privilegiam os resultados, as conclusões, trazendo pouco material empírico diante da imensa quantidade de referências consultadas”.
Entre a teoria e a prática
Uma característica importante de Foucault, segundo o professor, seria seu desprendimento em relação ao que já tinha realizado, a capacidade de “colocar entre parênteses o que tinha adquirido para poder adquirir coisas novas”. Ao pesquisar, ele “se rendia ao que o documento trazia de novo e não queria necessariamente ficar fiel ao seu próprio pensamento já produzido”.
Machado traz em seu livro uma interessante analogia de Foucault com a cobra que perde a pele. “A originalidade de Foucault é a singularidade do seu pensamento, ele não se interessava em criar um sistema conceitual. Não se interessava pelo que já tinha feito, mas pelo que de novo pudesse produzir, a partir das pesquisas empíricas”. Por isso não foi possível avançar no diálogo que tentou travar em 1983 com o filósofo alemão Jürgen Habermas sobre racionalização e poder, no esforço por elaborar uma crítica racional da racionalidade. Habermas buscou nele o filósofo tradicional, construtor de um sistema conceitual coerente, em que passado e presente se articulam, e não encontrou nada disso.
O palestrante também destacou a instrumentalidade do pensamento de Foucault e sua prática militante. Referiu-se a suas ideias como “instrumentos provisórios, parciais, para a prática e para a produção de novas teorias”. E a teoria seria como uma arma ou caixa de ferramentas, algo para ser usado, disse. “As questões da atualidade, do presente, sempre iluminaram suas pesquisas históricas. Antes de publicar Vigiar e Punir, Foucault esteve envolvido na criação do Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP). formado com o objetivo de “chamar atenção para o problema das prisões. “Não se tratava de falar pelos prisioneiros, e sim de criar condições para que os próprios prisioneiros pudessem denunciar o que de intolerável existia nas prisões francesas”. Ressaltou o impacto dessa postura sobre os meios intelectuais, citando uma frase de Deleuze: “Foucault nos ensinou sobre a indignidade de falar pelos outros”.
Um dos capítulos do livro que Machado lançou faz referência à frase de Foucault, “Toda coragem é física”. O filósofo teria mais de uma vez usado o próprio corpo, amparado por sua fama, para desafiar os poderes estabelecidos e defender imigrantes, prisioneiros, loucos, grevistas, “tendo inclusive participado das lutas que conseguiram acabar com a pena de morte na França”. Seu engajamento físico e existencial ficou mais pronunciado a partir de 1968, “mas não por causa do maio francês, uma vez que ele não se encontrava lá, mas por sua vivência do movimento estudantil na Tunísia”.
Os estudantes enfrentaram uma severa repressão, e o filósofo teria se envolvido profundamente, escondendo um mimeógrafo onde eram rodados panfletos, circulando em seu carro com estudantes perseguidos e participando das assembleias e protestos públicos contra a repressão. Segundo Machado, Foucault afirmou que “na Tunísia, o marxismo, muito mais que uma teoria, era uma força moral para os estudantes politicamente engajados”. E numa entrevista a um jornal, disse que só na Tunísia e no Brasil encontrou “estudantes tão interessantes, tão ávidos de saber”.
Pelas terras brasileiras
Foucault, lembrou Machado, veio cinco vezes ao Brasil e também teceu fortes críticas à ditadura militar aqui então instaurada. Em 1975, quando dava um curso na USP, houve uma onda de prisões de estudantes e professores. Foucault compareceu à assembleia, fez um pronunciamento de solidariedade aos estudantes e anunciou a suspensão do curso. Alguns dias depois, estourou o escândalo do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura, e o filósofo teria declarado que não ensinava em países onde jornalistas eram torturados e mortos na prisão.
Machado conta que Michel Foucault provocou repetidas vezes a ditadura para ser expulso do Brasil e causar repercussão internacional. Soube que não seria expulso, mas nunca mais poderia pôr os pés no país. Decidiu então voltar, ocasião em que veio à Bahia e fez uma conferência na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, campus de São Lázaro, no final de outubro de 1976. A tradução dessa conferência foi publicada pelos jornais anarquistas baianos Barbárie e Inimigos do Rei com o título “As malhas do poder”, em 1982, e depois em seu livro Dits et écrits.
O professor contou de forma descontraída passagens da rica convivência que teve com Michel Foucault. Certa vez, acompanhando o filósofo a Recife e sabedor de que este gostava do mar, teria perguntado a uma professora da universidade se fazia sol na cidade, se estava “dando praia”, ao que esta respondeu indignada: “Eu sou professora, eu não vou à praia, eu trabalho”. Ao saber dessa resposta, Foucault teria comentado: “Roberto, as pessoas aqui no Recife devem ter sido muito reprimidas pela ditadura, para não se dar ao prazer nem de ir à praia!”.
Fonte: EdgarDigital