A maioria dos funcionários terceirizados das áreas de limpeza e manutenção, segurança e portaria da UFBA é negra, ganha um salário mínimo, em média, e vive em bairros da periferia de Salvador. O percentual de terceirizados foi o que mais cresceu na última década, ao ponto de, hoje, a terceirização consumir mais da metade do orçamento de custeio da Universidade. Herdeiros de carreiras extintas no funcionalismo público nos anos 1990, atuando em uma condição “provisória-permanente”, eles encarnam um contraditório conceito: o de “servidores terceirizados”.
Esses são os dados mais gerais sobre a terceirização e o perfil dos funcionários terceirizados na UFBA encontrados pela professora Graça Druck, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, e sua equipe – formada pelas mestrandas Jeovana Sena, Marina Morena Pinto e Sâmia Araújo – a partir de uma pesquisa que analisou estatísticas disponíveis e entrevistou uma amostra qualificada de 105 trabalhadores de quase todas as unidades da UFBA, em um universo de terceirizados que, em 2015, somava 2.161 pessoas. A pesquisa resultou no artigo “A Terceirização no serviço público: particularidades e implicações”, a ser publicado em breve em uma coletânea organizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
O artigo é uma espécie de “fotografia” da situação atual da terceirização na UFBA – um trabalho que, além de inédito, foi de difícil realização, dada a escassez de registros e estatísticas sobre os terceirizados e a terceirização na Universidade. Essa fotografia revela que, em uma década (2006-2015), o número de funcionários terceirizados saltou impressionantes 127% (de 951 para 2.161), ante apenas 2,2% de aumento do total de técnico-administrativos (3.126 para 3.195) e 37% de expansão do quadro de docentes (1.708 para 2.337) no mesmo período. E que a terceirização consome atualmente cerca de 55% do orçamento da UFBA para custeio – um percentual elevado, que limita a capacidade de investimento e, sobretudo, fragiliza de modo imediato a Universidade em cenários de retração ou congelamento orçamentário.
As autoras apontam, contudo, que entre 2014 e 2015 houve queda de 16% do número de terceirizados, “o pode ser explicado pela atuação da administração central da Universidade, que fez um levantamento criterioso dos contratos das prestadoras de serviços, revendo as quantidades demandadas”. No mesmo período, o total de servidores concursados caiu 3,4% – o que deverá ser minimizado com a realização, neste ano, de concurso para admissão de 181 novos técnico-administrativos.
O avanço da terceirização “não é algo específico da UFBA”, enfatiza a professora Graça Druck. “O que fizemos foi tomar nossa própria Universidade como amostra de uma tendência generalizada no serviço público, que vem abandonando o perfil de Estado ‘social’ e adotando um perfil ‘gerencial’ ou ’empresarial’, como outros estudos nessa área já apontam.” Para a socióloga, o progressivo “intervencionismo neoliberal” no Estado – cujo marco inicial ela localiza em 1995, quando uma reforma levou à extinção de diversos cargos públicos considerados “atividades meio” (ou seja, que não são o objeto central do serviço prestado) – introduziu a terceirização no serviço público, seguindo tendência preconizada pelo setor privado. Em março deste ano, o Congresso aprovou e a Presidência sancionou a possibilidade de terceirização também das “atividades fim” pela iniciativa privada.
Druck, porém, observa que, por trás da imagem de “flexibilidade” e “agilidade” associada ao setor privado (em detrimento do público, tido pelo senso comum como “ultrapassado” e “ineficiente”), está uma campanha permanente, insuflada pelas empresas de comunicação, em defesa do encolhimento do Estado, que se traduz na desqualificação do servidor público, “com o objetivo de mostrar que ele não é mais necessário, que pode ser descartado, superado, substituído”.
O estudo argumenta que optar pela terceirização não necessariamente freia o desperdício de dinheiro de que os serviços estatais costumam ser acusados. Para se ter uma ideia, a professora Graça aponta que, em 2015, a UFBA gastou R$ 5,1 milhões com o pagamento das empresas fornecedoras de mão-de-obra terceirizada pelos 1.602 trabalhadores de limpeza e manutenção, segurança e portaria. Isso resulta em um custo médio per capita de R$ 3.224,24, algo muito superior à média de remuneração de um salário mínimo aferida pela pesquisa. “Se dobrarmos o valor do mínimo (R$ 788 em 2015) para tentar estimar o custo do salário mais encargos sociais, ainda assim o custo médio per capita seria de R$ 1.576”, observa a professora Graça. A maioria dos entrevistados (70%) diz ganhar um salário mínimo – os menores salários são os das mulheres negras com menor escolaridade: 94% afirmam ganhar o mínimo, atuando na limpeza – “expressão da tradicional divisão sexual do trabalho” articulada à desigualdade racial.
O cálculo mostra, portanto, que a mordida das empresas chega a ser maior do que o valor que elas gastam para manter o pessoal contratado. A cifra talvez se justificasse se as condições de trabalho fossem estimulantes, mas a percepção dos entrevistados diz o contrário: embora a maior parte deles (85%) trabalhe na UFBA há mais de um ano, 46% afirma já ter ficado sem tirar férias. Mais da metade (53,3%) responderam que a empresa não realiza nenhum treinamento de qualificação (entre os que receberam algum treinamento, 67,7% diz ter feito “curso de limpeza”). Metade (50,5%) dos entrevistados disse que o salário às vezes atrasa – 7,6% disseram que atrasa sempre. E 32% dizem já ter sido preciso entrar na Justiça para reivindicar direitos, na maioria das vezes por não pagamento de salários, FGTS, férias e décimo-terceiro.
Troca de crachás
Como pano de fundo dessa percepção, aponta o estudo, há um fenômeno conhecido como “troca de crachás”, “quando a empresa contratada, muitas vezes antes de completar um ano de serviços prestados, declara falência e rompe o contrato, sem pagar os direitos trabalhistas aos trabalhadores e esses mesmos trabalhadores são contratados por outra empresa terceirizada que a substitui”. As entrevistas apontam que “12% dos trabalhadores que trocaram de 2 a 4 vezes de empresas, desde quando começaram a trabalhar na UFBA, tiraram férias a cada 2 anos e 4 anos. Dos que trocaram de empresas de 5 a 7 vezes, tiraram férias a cada 2 a 6 anos. E se encontrou um trabalhador que ficou 10 anos sem férias”.
A professora Graça caracteriza essas empresas como “intermediárias”, ou seja, meras “vendedoras de força de trabalho”, que muitas vezes julgam-se no direito de suspender o pagamento aos funcionários, dando como justificativa a falta de repasse do órgão público contratante. Embora haja um dispositivo contratual que prevê a suspensão do fornecimento do serviço após três meses de inadimplência por parte da instituição contratante, não há amparo legal para a suspensão do pagamento dos salários dos funcionários – o que não se justifica também, entre outras razões, pelo fato de essas empresas em geral manterem contratos ativos com outros órgãos públicos ou privados, o que lhes garante algum fluxo de caixa.
No final da cadeia de precarização das relações trabalhistas está o impacto psicológico para os trabalhadores terceirizados. De um lado, a maioria (89%) se diz satisfeita com seus trabalhos e, em média, 80% dizem ter boa relação com estudantes, técnico-administrativos e docentes. Porém, do outro lado, 77% dizem que gostariam de ter outro emprego, e 99%, que prefeririam ser contratados como servidores públicos.
Na interpretação das autoras do estudo, “embora esses trabalhadores não tenham um vínculo trabalhista formal com a Instituição, o seu trabalho lhes proporciona um sentimento de pertencimento à UFBA, o que demostra que as atividades que realizam não estão à parte da ‘vida’ universitária, mas justamente ao contrário, são atividades fundamentais para a manutenção da Universidade”. O artigo aponta ainda que não são raros os casos em que a administração das unidades universitárias solicitam a permanência de funcionários antigos e queridos pela comunidade em casos de substituição da empresa contratada. “Poder dizer: ‘eu trabalho na UFBA’ expressa não somente o ‘orgulho’ ou ‘status’ de trabalhar numa universidade pública, como também a percepção de se sentir como parte da instituição”, afirmam as autoras. “E, por isso, são ‘servidores terceirizados’.”
Fonte: EdgarDigital